Conversas sobre a Vida - Capítulo 3: Justiça

Ele fedia.
Essa triste verdade foi o primeiro pensamento que me ocorreu quando fui apresentado para meu primeiro cliente trabalhista.

Eu era estagiário de um programa ligado à universidade, que prestava assistência jurídica à população de baixa renda.

Ele estava visivelmente preocupado.
Debruçado sobre a mesa, me contou que estava sendo processado. Que era um empregador e estava sendo processado.

Faltavam dentes em sua boca.

Exclamei, replicando a palavra empregador, enquanto franzia a testa.
Foi somente ao ler a citação, trazida no bolso da sua calça, dobrada duas vezes, que entendi: um suposto empregado o estava processando na justiça do trabalho.
A reação imediata foi perguntar se ele realmente tinha uma empresa ou algum empregado doméstico.
Foi então que começou a me contar sua história.

Trabalhava com reciclagem.
Poderia dizer, com grande precisão, que era um catador de lixo.
Rodava por alguns bairros, recolhendo itens de alumínio ou papelão, para vender a uma empresa de reciclagem.
Possuía até mesmo bens organizados para a consecução de suas atividades. Uma balança e um carro popular, com mais de trinta anos.

Seu único empregado, o autor da ação, era um vizinho.
Dizia que, diante da inaptidão do vizinho para o trabalho, havia resolvido ajudar sua família, permitindo que o auxiliasse a catar lixo para receber parte das vendas.

Ninguém ali ganhava um salário mínimo. Empregador ou empregado. 
Mas era certo que estavam presentes todos os requisitos para se configurar uma relação de emprego.
Subordinação, pessoalidade, habitualidade e onerosidade. Tudo dentro da cartilha da academia.
Meu cliente, inclusive, estabelecia a remuneração de seu empregado.

Como alguém que lapida uma escultura, debrucei-me sobre a escrivaninha. 
Encontrei jurisprudência que tratava de pequenos bares que não faturavam um salário mínimo.
Apoiavam a causa de meu cliente.

Preparei-me para a audiência. 
Empregador e empregado teriam seu dia na Corte.

Na sala de audiência, fiquei estarrecido com o empregado. 
Não pela sua condição análoga ao empregador.
Sua inaptidão para o trabalho podia ser representada pelo fato de não conseguir manter a língua dentro da boca.
A dificuldade de articular palavras, de coordenação. 
A provável deficiência intelectual. 
Tudo isso reforçava a caridade para a qual se dispunha o empregador.

Realmente surpreso ficou o advogado do empregado, quando pode observar a condição miserável de quem havia processado. 
Quem pagaria os honorários daquela peça, que demandava algumas centenas de salários mínimos, inclusive os decorrentes de folgas estabelecidas na convenção coletiva dos comerciários?
Claramente não havia se informado adequadamente sobre a natureza do trabalho, demasiadamente simples até para quem está caçando uns niqueis judiciais.
Como qualquer humano em choque, passou a ignorar todos os momentos até ali vividos. 
Queria sucesso suficiente apenas para lhe garantir  reembolso das horas de trabalho em que estaria preso àquele recinto.

Pronto para expor meus argumentos de defesa, deu-se o momento em que fui surpreendido.
Claramente não havia tempo disponível para quem tinha competência de dizer o direito. 
Nem para conhecer os fatos.
Nem para olhar a condição óbvia das partes.
Nem para pensar em exequibilidade de uma decisão.
Não se poderia julgar o caso. Era necessário que as partes transacionassem.
Com a afirmação proferida por alguém bem vestido, de que poderia ser condenado a pagar centenas de salários mínimos, o empregador ficou claramente intimidado. 
Nem consegui expor, iniciante tal qual era, os efeitos de se aceitar um acordo.
O empregador imediatamente se propôs a pagar um ano de seus rendimentos para que o caso ali se encerrasse.

A justiça, representada no Brasil por uma bela dama, sentada e vendada, se satisfez com o cumprimento de sua missão.

Já o acordo, esse nunca foi cumprido.

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