Regeremos

Como pode o ato de amar ser transitivo?
E como posso, eu, não ser clima?

Que se exploda a gramática.

Meu amor não transita.
E, quando nubla, é pessoal.

- 2011 -

Como laranja no azul

Depois do dever de automotivação, veio o dever de positividade.
"Se não deu certo é porque ainda não terminou" - eles diziam.
"Pense em coisas positivas que você as atrairá" - eles pregavam.

Mas se tratava de um anarquista. Era feliz em seu pequeno fracasso pessoal.
Bastavam seus três poemas numa folha de papel, esquecidos.

Seus heróis não acordavam com um sorriso no rosto.
Se reservavam o direito de não dar bom dia.
De, num fim de semana qualquer, serem encontrados enforcados ao lado de um bilhete, em um último escárnio.

Uns sugeriram fazer análise. Mais recentemente, passaram a recomendar um coach para a vida.
A maioria apenas mantinha a distância de segurança.

Mas preferiu fazer do choro no quarto escuro um ato revolucionário.
Sabia que o autocentramento na autofelicidade era a prisão na planificação do sentir.

Apreciar a melancolia dos acordes menores, com a intensidade do calor que esturrica a terra.
Para perceber, como laranja no azul, o sorriso mais visceral.

- 2019 -

Pare

O casal no carro importado
se beija ao parar no semáforo.

Seria o desejo,
não contido pelo freio de mão,

ou o inexorável hábito?

- 2019 -

A Resiliência do Tempo

Aconteceu hoje.
Mas poderia ter sido ontem, ou quem sabe há vinte anos.
Ou seria o hoje, amanhã, quiçá outrora.
Como pode o crepúsculo preceder a alvorada sem que o sol o denuncie?
Agora nada tem seu tempo, nem o tempo tem propósito.
O influxo foi quebrado, assim como os corações que dependem de cronologia.

É chegada a hora de o próprio tempo restar anacrônico.

- 2018 -

O Casamento de um Cético

Passei dias tentando escrever uma poesia ou algo capaz de a todos convencer do eterno amor que sinto por você.

Uma tarefa difícil para quem não acredita em palavras com sentido absoluto, verdades indiscutíveis ou idéias exatas e imutáveis.

Resultado: na tentativa de trazer um pingo de eterno para o meio desta tarde eu falhei, por motivos óbvios é verdade.

Porque o eterno compõe-se de coisas mais perenes que palavras, mais profundas que idéias e mais verdadeiras do que verdades.

E como fico eu, então, aqui, no meio de toda essa gente? Que espera ansiosa para que eu diga o que não dá para ser dito?

Eu digo que, embora eu não possa acreditar num Deus que não saiba dançar, em nós eu posso.

Porque o que nos une é o reverberar da estrutura mais essencial daquilo que forma tudo a nossa volta: o nosso amor é música!

- dez 2007 -

A despedida de Ivy

Amigos, não pensem que estas palavras são produto da torpeza que os medicamentos daqui me causam, embora seja verdade que me sentia menos hébria com as drogas receitadas nas ruas.

O fato é que decidi realizar, em um momento único, aquilo que a maioria de nós realiza um pouquinho por dia.

Tentei remediar, enganar minha consciência, mas a sapiência que este lugar me proporcionou fez-me perceber certos paradoxos nunca antes por mim imaginados, e o maior deles é, com certeza, o fato de que toda consciência humana tem como pré-programação a busca da morte.

A princípio isso pode soar um tanto quanto essêntrico.

Vejo muitas pessoas lutarem por suas vidas, mas, após uma observação um pouco mais atenta, facilmente chega-se a tal conclusão.

Por que fumamos se sabemos que isso mata?

Aos que não fumam, por que bebemos?

Aos que não bebem, por que comemos aquelas gordurinhas que entopem as coronárias?

Aos poucos pode-se perceber o quanto são corrosivos nossos hábitos, no entanto, essa nem se aproxima da conclusão mais paradoxal: fazemos isso porque nos proporciona prazer, e, por incrível que pareça, o que nos dá prazer mata um pouquinho.

Sexo sem camisinha, noites mal dormidas, noites não dormidas, maus hábitos alimentares, o gosto pelo que entorpece, o perigo, o sofrimento por aquilo que não podemos mudar, a angústia por ter metas inatingíveis... é, o cancer é psicológico...

Talvez ainda não esteja claro.

Quando pensamos em algo que nos causa dor, nosso corpo rejeita a imagem, não quer a causa do sofrimento. Entretanto, se algo dá prazer a ele, nos desperta vontade de realização de tal atividade. Logo, se aquilo que nos da prazer mata, o corpo não quer nada mais do que a morte.

Hoje resolvi realizar a vontade do meu inconsciente...

Ivy



-2001-

Estrelas

A cada dia uma estrela se apaga.
Sempre que olhamos para o céu estrelado,
vemos o passado.
Não importa em que direção olhemos,
sempre é em direção ao começo...
É tudo uma brincadeira da luz.
Uma ilusão de ótica.
Mas a luz é lúdica.
Força-nos a olhar para nós mesmos,
porque este é o sentido do futuro.

-2003-

Mercadoria

Guarda-chuvas na Paulista,
por que se digladiam?
Que mercadoria é essa que transportam?
Tão urgente e tão descartável!

- 2008 -

Verbos Auxiliares

Não quero ter,
eu quero ser.
Não quero estar,
só quero haver!

- Dez 1999 -

O Beijo

Esta noite recebi um beijo perfeito.
Lembro-me de um agradável perfume.
Foi um selinho, daqueles mais discretos.
De alguém com olhos tão tímidos que,
embora sem óculos,
pareciam apartados de mim por densos vidros.
Foi seguido por um sorriso,
e, depois, por um saltitar.
Precedido pela frase, no olhar:
Você não sabe o quanto isso é difícil para mim.

E o que fez a beleza do momento
não foi saber que eu era digno do beijo,
mas saber que mereci
um esforço sobrenatural de superação.

- 2000 -