Como laranja no azul

Depois do dever de automotivação, veio o dever de positividade.
"Se não deu certo é porque ainda não terminou" - eles diziam.
"Pense em coisas positivas que você as atrairá" - eles pregavam.

Mas se tratava de um anarquista. Era feliz em seu pequeno fracasso pessoal.
Bastavam seus três poemas numa folha de papel, esquecidos.

Seus heróis não acordavam com um sorriso no rosto.
Se reservavam o direito de não dar bom dia.
De, num fim de semana qualquer, serem encontrados enforcados ao lado de um bilhete, em um último escárnio.

Uns sugeriram fazer análise. Mais recentemente, passaram a recomendar um coach para a vida.
A maioria apenas mantinha a distância de segurança.

Mas preferiu fazer do choro no quarto escuro um ato revolucionário.
Sabia que o autocentramento na autofelicidade era a prisão na planificação do sentir.

Apreciar a melancolia dos acordes menores, com a intensidade do calor que esturrica a terra.
Para perceber, como laranja no azul, o sorriso mais visceral.

- 2019 -

2 comentários:

  1. Simplesmente adorei esse texto!

    Não só porque me identifico com muitas coisas, mas porque sou frequentemente “vítima” desses conselhos de frase feita e acho deplorável (hahaha!).

    Todo mundo pensa saber a solução para a vida do outro (para a própria vida ninguém sabe) e fica soltando essas coisas de “o melhor está por vir”; “se o final não é feliz não é o final”; “você atrai aquilo que você emana” e outras filosofias de botequim.

    Sem contar os conselhos de procurar terapia, procurar um “coach” (última moda de Paris) ou a pior de todas: “você precisa se espiritualizar”.

    Já me indicaram yoga, meditação, hoponopono (nem sei escrever isso, mas é um negócio muito tosco). Dou um sorriso amarelo como resposta e largo a pessoa falando sozinha.

    Todos amam se iludir com essas de que “tudo que vai, volta”, lei do retorno... Em que planeta esse povo vive? Porque nesse aqui, geralmente são os FDPs que sempre se dão bem. Aí a gente fala algumas verdades inconvenientes e fica com fama de azedo. Nem ligo!

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  2. Mais do que o conselho de frase feita, acho que o que me incomoda é a vedação que a sociedade impõe à desistência, à tristeza e a qualquer sentimento que não tenha o selo de socialmente aceito. Se se está num dia cinza, logo vem alguém dizer que isso ou aquilo.

    Nada contra yoga, meditação, etc. Acho válidas quaisquer atividades que façam a gente parar e pensar um pouco sobre si. Lógico que temos que ser bem realistas e céticos quanto aos resultados dessas práticas não muito ortodoxas.
    Mas, fatalmente, para pessoas como você, escrever é uma prática de autoconhecimento já bastante eficaz.

    Nossa, nem me fale de lei do retorno. É impressionante a quantidade de consequências negativas que essa crença induz.

    PS: É comum eu nomear meus textos depois de um tempo publicados. Principalmente os novos. Demoro para entender do que se tratam (rs).

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