E ele entra na classe, em meio a um barulho quase ensurdecedor.
Fácil perceber por que mais de três quartos dos alunos terminam o ensino fundamental incapazes de compreender um texto ou realizar as quatro operações fundamentais da matemática.
Nível de atenção: 2%
Passara a noite pensando em como lidar, de frente, com cinqüenta seres humanos, que produzem, cada um, calor equivalente a uma lâmpada incandescente de 40 watts.
Qual assunto poderia interessar a essas feras indomáveis? Como mostrá-los que história poderia ser-lhes útil mesmo sabendo que 90% daquilo descrito em suas apostilas era, de fato, inutilizável em suas vidas?
Não havia saída senão a sinceridade.
Caminhou lentamente até o meio do palco que o separava e distinguia dos demais, arregalou os olhos, e num tom moderado de voz exclamou “bom dia”.
Nível de atenção: 16%
Desceu da pequena elevação, sentou-se em sua borda e aguardou alguns segundos em silêncio.
Nível de atenção: 18%
Nos poucos segundos que a marcha da história percorreu desde seu último movimento, admitiu que a estratégia só era eficaz consigo.
- Bom dia, eu sou seu novo professor de história e estou aqui para bater um papo e me apresentar.
E com um tom de voz um pouco mais elevado:
- Alguém aqui tem idéia de qual o infeliz motivo que obriga os senhores a assistirem, digo, a precisarem estar presentes numa aula, digo, a essa coisa que alguns professores tentam transformar em aula de história?
Nível de atenção: 24%
E, o que era improvável, mas não tão improvável dado o agente, aconteceu.
Respondeu a menina franzina, cheia de cachos e com óculos espessos, sentada na segunda carteira encostada na parede:
- Professor, segundo o que diz aqui na terceira página da apostila, temos que aprender história porque com ela nós entendemos nosso passado e, com isso, poderemos mudar o futuro.
Nível de atenção: 14%
Imóvel (ainda sentado) e impassível, ele pergunta:
- Qual seu nome? Quer dizer, você prefere ser chamada...
- Larissa.
- Certo Larissa. Essa é uma ótima resposta para outra pergunta. Por favor, na página três risquem todos os “porquês”– dessa vez num tom de voz bastante elevado.
Nível de atenção: 70%
- Mas professor as apostilas serão reaproveitadas, e antes que você pergunte, me chamam de Bagulho.
- Acredite, estaremos fazendo um favor para os futuros usuários. Essa não é a resposta do “porquê” e, sim, do “para que”. Não é o motivo, mas a finalidade.
- E o motivo não é a importância da finalidade? – pergunta novamente a Larissa.
- Pessoal, deixem-me fazer uma importante pesquisa. – novamente aos berros – 0 que vocês acham mais importante: futebol, moda, história ou mecânica de automóveis? Quem acha futebol, por favor, levante a mão.
E cinco pessoas levantaram a mão para futebol, duas para moda, quatro para história (talvez na tentativa de agradar o professor) e sete para mecânica.
- Com isso chego a duas conclusões, a primeira, obviamente, é que Aristóteles errou ao conceituar o terceiro excluído – acontece um breve silêncio de todos que não entenderam a piada – e a segunda que, pelo menos em nosso ambiente, história não é considerado um tema tão relevante quanto outros aqui não lecionados.
- Professor, eles não têm capacidade de compreender o que é importante para eles.
Nível de atenção: 46%
- Bem, eu particularmente acredito que o que me diferencia de vocês, no momento, é conhecer um pouco mais sobre um tema que vocês consideram desimportante. Além do que, também não concordo com a grade curricular apresentada para vocês. Não vejo o motivo pelo qual uma disciplina como Psicologia ou Música são menos importantes que História e, por isso, não devam ser lecionadas. Com História descobrimos um pouco de como funciona a sociedade, mas com Psicologia descobrimos um pouco do funcionamento da mente humana. Quem tem o direito de decidir o que é melhor aprender para seguir a vida de vocês? Talvez seja mesmo mecânica.
- Logo, talvez eu também não tenha essa compreensão que você mencionou, Larissa.
Gritou, então, um aluno do fundão:
- A pergunta é: por que você está aqui, então?
- A resposta é complicada, mas evidente. Os motivos são dois: alguém, que tem poder de decidir sobre a educação de vocês, acha que história é importante o suficiente para que o Estado me pague para os ensinar, e eu concordo com esse alguém. É estranho, a geração mais velha decidindo sobre a mais nova, indicando como melhor um caminho que nem necessariamente seguiu.
Nível de atenção: 40%
- E o que acontece com quem discorda desse alguém? – perguntou Bagulho.
- Bom, discordar não é o problema. A grande questão é como manifestar a discordância. A mais simplória e menos eficaz, sem dúvida, é desistir das aulas, ser reprovado e, ou ser obrigado a cursar a matéria de novo, ou acabar abandonando os estudos em seu modelo clássico, com grande probabilidade de ser excluído da sociedade.
- Tá, tudo isso para nos convencer de que o melhor jeito é baixar a cabeça?
- Não, ainda sobraram dois métodos. Um deles é organizar-se, impor, de modo coeso, suas vontades, arranjando um jeito de pressionar aquele quem tem poder de mudar a situação de vocês. Esse alguém não sou eu, nem o diretor. Pode ser a própria sociedade, ou os altos representantes do Estado. A sociedade pode eliminar a sanção pela não educação formal, e os altos representantes do Estado podem, de fato, mudar suas grades curriculares.
- O chato é q se isso não funcionar cairemos na primeira situação. Numa rebeldia sem resultado – esbravejou Larissa.
Nível de atenção: 26%
- A conclusão procede. Foi por não conseguir resultado com a primeira possibilidade que optei pela segunda: entrar no jogo burocrático, o qual, não sei o porquê, a sociedade considera mais legítimo. Tudo para chegar num posto com poder decisório para mudar nossa realidade.
- E já que está aqui, sem poder mudar nossa situação, presumo que foi um fracasso. – disse a voz de trás de Larissa.
Nível de atenção: 12%
- Engana-se somente em parte. Não tenho poder decisório para mudar suas grades curriculares, no entanto, posso decidir como passar a informação em sala de aula.
- E falando em aula... – comenta uma voz ainda desconhecida
- Então, que se comece a primeira página da apostila.
Nível de atenção: 8%
- nov 2007 -
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Parabéns pelo texto Armando.
ResponderExcluirBFF
E você ainda quer... =P
ResponderExcluir